Festival da Comida Esquecida: O esperado regresso
Há projetos que carregam em si a força transformadora das coisas simples. O Festival da Comida Esquecida, nascido no contexto da última edição do programa cultural 365 Algarve, foi um desses raros exemplos de como a cultura, quando profundamente enraizada no coração e na memória coletiva de um território, pode abrir caminhos inesperados de futuro. Trazê-lo de volta não é apenas um gesto de resistência cultural: é um compromisso com o Algarve que tão facilmente se esquece, com as suas gentes, com o património que resiste na sombra e que tantas vezes se perde em silêncio.
Experiência de ordenha de cabra, integrada num dos eventos do Festival da Comida Esquecida nos Giões (Alcoutim).
Receitas antigas, modos de preparar e partilhar a comida, ingredientes que já quase não encontram lugar nos mercados ou nas cozinhas modernas – tudo isto constitui um património imaterial de valor incalculável. Não se trata apenas de gastronomia, mas de uma herança cultural que traduz a relação íntima entre o ser humano e a terra, entre o tempo lento das estações e a sabedoria transmitida de geração em geração. Resgatar esses saberes é um ato de resistência cultural e, ao mesmo tempo, um convite à inovação, pois o que se recupera pode ser recriado, reinterpretado e adaptado a novos contextos.
Mas o impacto do Festival da Comida Esquecida não se esgota na sua dimensão simbólica. Os territórios do interior do Algarve vivem uma fragilidade económica crónica: despovoamento, envelhecimento da população, perda de serviços essenciais e uma dependência quase total do litoral. Projetos culturais de pequena escala, criados a partir do nosso património comum, desempenham um papel estratégico neste contexto. Criam momentos de encontro, atraem visitantes, movimentam as frágeis economias locais, geram novas oportunidades para produtores, artesãos, pequenos restaurantes e alojamentos. O que à primeira vista pode parecer um propósito de pouca ambição traduz-se, na prática, em circulação de pessoas, estímulo de novas ideias, visibilidade para estes territórios e, claro, algum retorno económico.
Pequenos projetos são como faíscas que acendem fogueiras maiores: estimulam o sentimento de pertença, despertam memória e reforçam laços entre todos os que ocupam estes territórios. Quando uma comunidade se reconhece na sua própria herança e sente que essa herança é valorizada, torna-se mais ativa, mais criativa e mais disposta a investir em si mesma. É neste sentido que a preservação do património imaterial se transforma numa poderosa ferramenta de futuro: ao olhar para trás com respeito, abre-se espaço para caminhar para a frente com confiança.
Há, ainda, uma outra dimensão que gostaria de destacar como essencial: a da resiliência dos territórios. Projetos como o Festival da Comida Esquecida constroem redes de cooperação, porque juntam em torno dos mais idosos, detentores destes saberes quase perdidos, produtores, cozinheiros, investigadores, artistas, autarquias e público. Criam-se, assim, pontes entre diferentes áreas do saber e entre diferentes gerações, com vista a um objetivo comum. A cozinha tradicional, que tantas vezes é guardada pelas mãos mais velhas, encontra-se com a curiosidade dos mais jovens; os produtos locais encontram novas formas de valorização; os territórios mais isolados são reintroduzidos nos circuitos culturais e turísticos da região. Esta rede de cooperantes fortalece as comunidades, tornando-as menos dependentes de fatores externos e mais capazes de encontrar soluções próprias para fazer face aos novos desafios que têm pela frente.
Num tempo em que os cidadãos se convertem em consumidores com gostos, hábitos e modos de vida cada vez mais uniformizados, o Festival da Comida Esquecida é também uma afirmação política e cultural: a de que a diversidade importa, a de que a singularidade das gentes e dos lugares deve ser preservada, e que, no limite, somos nós os guardiões dessa herança.
O regresso deste festival devolve ao Algarve interior uma voz mais forte e mais clara, capaz de dizer ao mundo que aqui existe uma riqueza que não se mede em números de turistas ou em metros quadrados de praia, mas em histórias, sabores e memórias que resistem no tempo. Porque o que está em causa não é apenas a continuidade de um evento, mas a afirmação de um modelo de desenvolvimento que coloca as pessoas no centro, que valoriza os saberes e conhecimentos ancestrais e que reconhece na cultura um verdadeiro poder de transformação social e económica.
Anabela Afonso
Ex-Comissária do Programa Cultural 365 Algarve
Membro do grupo coordenador do WFSBN – Festival de Caminhadas de Sta. Bárbara de Nexe
Cooperante da QRER